Jogando para ensinar

No esporte educacional há dois detalhes, ao menos, que o diferencia das demais práticas reconhecidas no Brasil, quais sejam, o esporte de alto rendimento e o esporte de participação ou de lazer. Nesses dois últimos, mesmo que sejam educacionais, não o são intencionalmente. No esporte educacional sim, há a intenção explícita de educar, embora, de maneira geral, sejam muito confusos os objetivos quanto ao que educar. Além disso, no esporte educacional a prática do esporte é fim e meio, intencionalmente, ao passo que nas demais manifestações esportivas a prática esportiva é apenas fim. O Instituto Esporte e Educação (IEE), no entanto, pretende promover educação esportiva para crianças e adolescentes explicitando claramente os objetivos educacionais de suas práticas.

Essa explicitação começa pela definição dos princípios que alicerçam o esporte educacional na visão do IEE: a inclusão de todos, o respeito à diversidade, a autonomia, a construção coletiva e a educação integral. Respeitando tais princípios e garantindo, na prática, que o esporte será bem ensinado a todos, levando dele conhecimentos para a vida fora das quadras, campos, piscinas e outros espaços esportivos, o IEE esclarece seus objetivos educacionais. Pessoas educadas para ter autonomia e construir coletivamente, pessoas que são aceitas no esporte independentemente de suas crenças religiosas, suas cores de pele, suas orientações sexuais, pesos, tamanhos, nacionalidades etc. São educadas para viverem como cidadãs e praticar esportes é uma maneira de viver como tal. Mas não cidadãs aleatoriamente em qualquer sociedade, mas cidadãs que aspiram a democracia e com chances de participar da construção de uma sociedade melhor, isto é, mais justa e digna.

No campo da educação, não bastam as intenções, porém. Aquilo que se pensa, que se planeja em educação, tem que ser convertido em práticas que materializem tais intenções. No caso do esporte, não basta saber controlar uma bola, por exemplo, para que as intenções de formar cidadãos se concretizem. No esporte educacional é importante aprender a controlar uma bola. Porém, os objetivos da educação esportiva vão além disso, pretendem formar o jogador de bola e o cidadão. O jogar bola não opera, por si só, o milagre de formar o cidadão digno, justo, equilibrado, generoso, autônomo, solidário, capaz de lidar racionalmente com os problemas, de conviver em família, em grupos sociais, em ambientes políticos. Ora, se o jogar bola, por si só, não garante a formação do cidadão, temos que encontrar a solução para isso nos meios para se chegar a aprender a jogar bola. Ou seja, no método.

De nosso ponto de vista, quando se trata de educar num ambiente lúdico, por exemplo, no esporte, algo muito especial acontece: os alunos entregam-se às aprendizagens por encantamento; encantamento pelo jogo, pelo lúdico. Não é preciso amarrá-los em carteiras, amordaçá-los, reprimir seus sentimentos, eliminar suas emoções. O esporte admite sentimentos, emoções, paixões de vários tipos e não pode ser bem praticado sem isso. Em nosso empenho educacional, o jogo – e com ele as brincadeiras e o esporte – é o combustível das aprendizagens, o impulso maior, a mais forte motivação. Não foi apenas porque o IEE nasceu do esporte que o jogo se tornou o motor das práticas educacionais do esporte educacional, mas também porque o jogo torna a educação encantadora, querida pelos alunos, que não precisam ser amarrados, amordaçados e chantageados para aprender somente aquilo que as instituições querem ensinar.

Antes de tudo, durante uma aula, é preciso ter a adesão dos alunos e, em seguida, ter sua atenção ao que deve ser aprendido. Depois, é necessário definir que ponto de vista será assumido durante o processo educacional. Na tradição escolar, o ponto de vista assumido é o da escola, do currículo, do educador. No caso do esporte educacional, e até pelas características do lúdico, o ponto de vista assumido tem dois lados, o de quem ensina e o de quem aprende. Por exemplo, quando, ao ensinar brincadeiras de basquetebol para crianças, disponibilizamos tabelas e aros em diversas alturas, estamos considerando o ponto de vista dessas crianças. Nesse caso, trata-se do esporte virando criança. Na educação tradicional, a criança teria que virar esporte.

Os exemplos dados pelo esporte educacional na visão do Instituto Esporte e Educação, em que o ponto de vista dos alunos é tão importante quanto o dos professores, são fartos: quando abaixamos as redes de voleibol, quando aumentamos o números de metas no futebol, quando adaptamos o jogo de golfe, quando definimos uma metodologia criança para o slackline, quando fazemos raquetes leves e baratas para jogar tênis, quando fabricamos bolas de meias para diversos jogos, quando transformamos tampinhas de garrafas em objetos de criatividade de brincadeiras e assim por diante.

Contamos com a adesão entusiasmada dos alunos quando se trata de ensinar o esporte educacional. São raros os casos de insucesso de aprendizagem nas aulas. Porém, temos, ainda, que esclarecer a questão de formação de cidadãos. No IEE chamamos a formação de conhecimentos que vão além das práticas imediatas de educação integral. É um dos pilares da metodologia do IEE.

Só há uma maneira possível de garantir, minimamente, que aquilo que se aprende em uma prática esportiva vá além dessa prática e se estenda à vida fora do esporte a curto, médio e longo prazo: a maneira de educar, isto é, o método. Cooperação é, por exemplo, fazer junto com outros aquilo que não se pode fazer sozinho, tendo por objetivo o bem comum. Essa prática cooperativa pode ser realizada nas brincadeiras coletivas. Não se trata de fazer uma brincadeira qualquer e, em seguida, proferir um discurso sobre as virtudes da cooperação. Trata-se, sim, de realizar a prática de maneira que os alunos acompanhem, conscientemente, cada passo da construção da brincadeira. Esse é um dos princípios do esporte educacional, ou seja, a construção coletiva.

Acompanhemos: primeiro a professora chama seus alunos e se senta com eles em uma roda. Em seguida propõe uma brincadeira coletiva para fazer na aula. Pergunta quem a conhece. Pede opiniões, descrições, passa a palavra a seus alunos, provoca conflitos, administra-os, ajuda seus alunos a chegarem a um acordo. Depois parte para a prática com eles. Enquanto brincam, fica atenta aos acertos, aos erros, às reclamações. A cada discussão, interrompe a atividade e conversa com os alunos sobre o problema, conduzindo a conversa para a construção de uma regra que supere os conflitos. A brincadeira continua até o final da aula, quando novamente alunos e professora se reúnem em roda para uma conversa sobre as práticas realizadas.

Especialização precoce no esporte

            O conhecimento científico atual não justifica, em nenhuma hipótese, a especialização precoce, do que quer que seja. Por exemplo, não haveria nenhum mal no fato de uma criança de cinco anos aprender a ler. Haveria mal sim, se o aprendizado da leitura tomasse o seu tempo de ser criança.

            A natureza organiza-se na diversidade e não na especialidade. Os organismos, de modo geral, antes de se especializarem, se diversificam. Os prédios, antes de serem construídos, recebem um alicerce.

            Há princípios gerais que merecem ser lembrados quando do ensino do esporte. Por exemplo, nenhuma criança aprenderá tanto quanto em seu primeiro momento de vida. Nenhuma criança aprenderá tanto quanto em seu primeiro minuto de vida. Nenhuma criança aprenderá tanto quanto em sua primeira hora de vida; e assim por diante. É um princípio lógico; quando nasce uma criança, ela nada sabe ainda, portanto, poderá aprender tudo. À medida que vai aprendendo, menos coisas terá para aprender.

            Jacques Mehler, um psicólogo francês, afirma que, quanto mais se aprende, menos se pode aprender.

            Ainda um outro princípio: uma vez que a espécie humana precisa realizar aprendizagens para sobreviver, precisa de um tempo especial para proceder a essa aprendizagem. Esse tempo é a juventude.

            Portanto, na hipótese de investirmos, no começo da vida, em grandes doses de um único conhecimento, preencheremos o espaço de aprendizagens, ainda imenso, com uma única coisa. Ora, se o sujeito é jovem para aprender bastante, se ele tem tudo ainda para aprender, por qual motivo teria que se especializar. Numa outra hipótese, se os conhecimentos específicos necessitam de base sólida para se assentarem, estariam comprometidos quando da inexistência dessa base. Evidentemente que a especialização precoce comprometeria a formação de uma base sólida.

           Se exceções existem, não podem ser tomadas como regra geral. Os atletas mais geniais viveram experiências que os homens comuns não conseguem viver. Julgar que um menino, sendo treinado desde o berço para jogar futebol, chegue a ser como Pelé, pode comprometer gerações de possíveis bons futebolistas.

O possível e o necessário: a importância da liberdade de escolha

Segundo Piaget, antes de realizar qualquer ação, a pessoa a torna possível. O que isso significa? Vamos a um exemplo: uma criança de cinco anos de idade quer acertar um alvo no chão a 5 metros dela lançando uma bolinha de tênis. Essa não é, claro, a primeira experiência da criança com lançamentos de objetos desse tipo; desde que começou a pegar objetos ela os lança das mais diversas maneiras. Não daria para calcular o número de vezes em que ela lançou objetos a uma certa distância. Centenas, milhares de vezes? O fato é que, ao longo dos seus cinco anos, ela acumulou uma experiência razoável de lançar. Ainda segundo Piaget, todas as vezes em que ela fez isso, antes de fazê-lo ela tornou possível essa ação, isto é, ela considerou, consciente ou inconscientemente, algumas hipóteses possíveis. Voltemos ao exemplo. A criança tem um alvo à sua frente e sua brincadeira é derrubar esse alvo com uma bolinha. Ela vai tornar isso possível considerando algumas hipóteses, consciente ou inconscientemente. Pode lançar a bolinha rente ao chão, pode lançá-la sem tocar o chão, pode lançá-la quicando no chão, pode usar a mão direita, as duas mãos ao mesmo tempo, a mão esquerda, usar a mão toda fechada, somente os dedos e assim por diante. Diante de tantas hipóteses, algumas são melhores que outras para aquela situação. Ela decide lançar a bola rente ao chão e erra o alvo. Mas talvez seja uma boa hipótese, precisa apenas de uns ajustes. Erra errou, mas passou perto. Tenta de novo, agora com mais força e uma pequena mudança de direção e, acerta! Ou seja, ela fez boas escolhas e a segunda deu certo. Por que não acertou na primeira tentativa? Até poderia ter acertado, pois fez uma boa escolha e a sorte poderia tê-la ajudado. Temos que lembrar que toda situação é, por mínimo que seja, nova. Por mais que a criança já tivesse vivido experiências de lançar objetos, aquela situação tinha algo de novo, como toda situação tem. Então, teoricamente, toda situação, por melhor que seja a escolha do gesto, exige algum ajuste. A criança de nossa história fez o ajuste correto. Isso, no entanto, não garante que, se ela tentar de novo tenha êxito, mas aumenta suas chances.

O que importa para este estudo, mais que o erro ou o acerto, é o fato de que ela tinha escolhas. Por ter sido uma criança com liberdade para brincar com muitos brinquedos, ela tinha um repertório diversificado de possibilidades para realizar a ação. Criando um artifício numérico, vamos comparar uma criança que tem poucas experiências com a criança de nosso exemplo. A primeira foi criada com repressão, pouco espaço, poucos brinquedos, sem estímulos dos pais ou outras pessoas. Então, digamos que ela tem apenas 100 possíveis diante da tarefa de acertar o alvo. A segunda, cheia de estímulos, vivendo num ambiente rico de experiências, tem 1000 possíveis. Isso não quer dizer que a segunda criança necessariamente acertará e a primeira errará. Porém, se lançarem, por exemplo, vinte vezes a bolinha, é bem provável que a segunda criança acertará mais vezes, por ter mais escolhas, portanto, mais chances.

Aumentar as experiências, enriquecê-las, diversificá-las, não é garantia de sucesso, mas aumenta as chances sobre os que possuem experiências pobres.

Ainda devemos acrescentar que, a cada tentativa feita pela criança, ela realizará algum movimento nunca feito antes, pois as coisas nunca se repetem. Além disso, entre as hipóteses levantadas para tornar possível o êxito, diversas podem ser originais, isto é, algo parecido com as experiências anteriores mas que não são iguais. Como se explica isso? Acontece que a experiência de acertar o alvo a 5 metros de distância é nova, desconhecida. Se é uma experiência nova, óbvio que nenhuma experiência velha servirá. Não serve, mas serve como aproximação para criar alvo novo que sirva. A criança não sabe disso, mas se ela tentar repetir uma experiência velha, ela não servirá, a menos que conte com a sorte. Então, ao tornar possível a ação antes de realizar o lançamento de 5 metros, a criança considera outras possibilidades. Entre essas possibilidades, talvez nenhuma leve ao êxito como aconteceu na primeira tentativa em nosso exemplo, mas todas as hipóteses ficam guardadas como num banco de dados para futuras ações. Dito assim, parece que tudo isso passa pela mente da criança de forma clara. Não, não acontece assim, é tudo muito rápido e o inconsciente trabalha mais que o consciente na escolha das hipóteses. Vendo que algo deu certo a tendência e repetir o que deu certo na próxima vez; vendo que deu errado a tendência e realizar algum ajuste na próxima vez.

            E assim, de experiência em experiência, para cada grupo de habilidades, forma-se um conjunto inumerável de possíveis no repertório de possíveis. Um verdadeiro banco de dados à disposição de futuras escolhas.

            Porém, de nada valerão tantas possibilidades se não houver liberdade de escolhas. Imaginem alguém que tenha um repertório imenso mas é tolhido por falta de liberdade de escolhas. Estou pensando em meninos e meninas que brincaram muito, com liberdade, junto aos amigos e parentes, que vieram da rua, que aprenderam tantas coisas brincando, que, um dia, vão para uma equipe de algum esporte e são tolhidos por seus professores e técnicos, não podendo mais ser criativos, não podendo mais fazer escolhas e só podendo obedecer aos comandos de quem se encarrega de sua orientação.

Bibliografia consultada

Piaget, Jean. O possível e o necessário, volume 1: evolução dos possíveis na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

Piaget, Jean. O possível e o necessário, volume 2: evolução dos necessários na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.