— COLUNISTAS/ Fabio Luiz D'Angelo

Esporte Educacional: Jogar para Aprender ou Aprender para Jogar?

ESCRITO EM — 10/04/2023

10:28 hs

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Na minha trajetória de professor nunca vi um aluno chegar até mim e falar: “Fabio, você me ensina a jogar futebol, porque jogando futebol eu vou me tornar uma criança mais cooperativa, participativa, crítica e consciente dos meus direitos e deveres”. Estranho, não é mesmo? Difícil até de entender que este “discurso” não esteja na “boca” da gurizada. Afinal, fomos, todos nós professores, educados para reproduzir e ensinar o modelo de que o esporte vai salvar vidas por aí. A verdade é que as “coisas” não são tão “simples” assim.

Por outro lado, o que mais escutei, principalmente no início das aulas foi: “Fabio, hoje vai ter jogo?” Confesso até uma dificuldade para lidar com esta pergunta. Por muito tempo, a minha resposta foi: “Primeiro vamos treinar os fundamentos, depois, se vocês não fizerem bagunça, dou um joguinho no final da aula”. O que fazia era lembrar do meu tempo de moleque e das horas e horas que passei correndo em círculo para aquecer o corpo, chutando a bola na parede para aprimorar o passe e o chute, contornando os cones para melhorar o drible, etc. Parece que esta experiência ficou tatuada no meu corpo e os anos de estudos na faculdade não foram suficientes para romper com este modelo cartesiano onde prevalece a visão de que se o sujeito souber as partes, ele vai saber o todo. Por isso, não me culpem! O que fiz foi apenas repetir o que vivi como criança e estudante universitário.

O que aprendi de tudo isso? Aprendi que quando um menino ou uma menina vem para a nossa aula jogar futebol, vôlei ou qualquer outro esporte, eles precisam ser satisfeitos quanto a isso. Nesta perspectiva, eles precisam aprender para jogar, ou seja, precisam desenvolver competências mínimas para conseguir participar dos espaços de prática do esporte, sejam eles formais ou informais. Eu mesmo já vi muitas crianças serem excluídas por não conseguirem dar um “trato” refinado para a bola, um dos brinquedos mais queridos da cultura infantil. Quem nunca escutou nos campinhos de terra ou nos recreios escolares algo do tipo: “Sai daí seu perneta”, “Sai fora seu grosso”. Por isso defendo o que chamo de alfabetização corporal, processo de educação da motricidade que tem a ver com aprender a se comunicar corporalmente nos jogos, brincadeiras e esportes que compõem o que denominamos de cultura corporal. A lógica das crianças, às vezes, é mais ou menos assim, quem não sabe ou não aprendeu, não joga. A criança real é amável, sensível e tolerante, mas em alguns momentos também é cruel, impaciente e egocêntrica. Aprender para jogar, neste sentido, quer dizer inserir-se socialmente, sentir-se incluído e com a sensação de que “sou capaz”, de que “consigo jogar”. Vejam que a palavra APRENDER é realçada e valorizada. Isto porque acreditamos que ninguém nasce mais ou menos alfabetizado corporalmente, ou melhor, esportivamente. Assim, se tem alguém que aprende, existe alguém que ensina, alguém que pode contribuir para que todos tenham a oportunidade de exercer seu direito à prática esportiva, seja como lazer, educação ou rendimento.

Bem, mas se é preciso ensinar bem o esporte para todos, não podemos esquecer que o nosso compromisso é com a educação para além dos muros da quadra. Como professor, me permito olhar para o futuro e ver no esporte o princípio de que as crianças também jogam para aprender. Imagino que esta ideia do jogar para aprender vai de encontro à proposta de que o esporte, na sua dimensão educacional, não tem fim nele mesmo. A nossa missão é potencializar valores como a criatividade, a cooperação, o protagonismo, o respeito, etc; todos muito presentes no momento do jogo e da prática esportiva. A isso dou o nome de cidadania, um conjunto de aprendizagens e conhecimentos que servem não só para os tempos em que a bola rola na quadra, mas principalmente para as situações de vida que acontecem fora do esporte. Quando me perguntam se é possível educar para a cidadania através do esporte, eu respondo que sim. Porém, faço uma ressalva: tudo é uma questão de método.

O grande desafio está em articular as intenções e as ações. Falando de forma mais simples, é preciso que os discursos sejam colocados em prática. Todos os professores devem orientar as suas aulas de acordo com um jeito de fazer que objetiva a construção de conhecimentos que, não só estejam vinculados ao jogar bem, mas também possam contribuir para a formação da cidadania. Mais do que jogar para aprender ou aprender para jogar, o método se orienta pela máxima de que jogar se aprende jogando. Nada a ver com aquele professor que solta a bola e vai tomar um cafezinho ou ler o jornal. As famosas rodas de conversa, as boas perguntas, os bons desafios, a diversificação dos materiais, a caixa de ferramentas recheada, a lousa para os registros, as tarefas compartilhadas, a interação com os alunos, o jogo e a brincadeira fazem parte de um método que se caracteriza pela qualidade da INTERVENÇÃO do professor e pela AÇÃO das crianças como construtores do próprio conhecimento.

Neste aspecto Jogar para Aprender e Aprender para Jogar são como duas faces de uma mesma moeda, ou seja, complementares, irredutíveis e indissociáveis. O fim deste processo está em acreditar numa pedagogia do esporte que integra o fazer e o compreender, que fomenta a tomada de consciência através do conflito, da contradição, algo que o Professor João Freire[1] descreve como “voar sobre a ação, ver dentro de nós o que a gente viu ou fez fora de nós, olhar para dentro e ver com clareza a própria ação realizada”. Todas às vezes que nas aulas diversificamos, fazemos uma variação ou criamos um “obstáculo” para os alunos, provocamos uma contradição entre o velho e o novo, entre aquilo que já sabemos e aquilo que devemos aprender. Aí os alunos ficam com dúvidas. Essas dúvidas geram reflexões, compreensões e obrigam a todos a olhar para dentro de si. Olhar para dentro é tomar consciência, é mais ou menos como saber o que se faz, saber o que se sabe.

Dica: Assista ao vídeo com o Professor Lino de Macedo. Especialista na pedagogia do jogo, não só nos jogos de quadra/esportivos, o professor Lino nos dá algumas pistas de como integrar o fazer e o compreender, através da proposição de desafios e situações-problema.

E o que isso tudo tem a ver com CIDADANIA? A resposta é simples… simples no sentido de simplicidade e não de facilidade. Crianças e jovens que na prática do esporte tomam consciência e sabem o que sabem e o que fazem, fortalecem o seu pensamento. O pensamento fortalecido é o primeiro passo para o exercício da cidadania. Sabem por que? Quando eu tenho o pensamento fortalecido, tenho mais condições de fazer as boas escolhas, sem que os outros o façam por mim. Isso quer dizer AUTONOMIA, atitude essencial para a formação da CIDADANIA.


[1] Professor João Batista Freire é consultor do IEE e autor do livro “Ensinar esporte, ensinando a viver”.

Fabio L. D'Angelo
Coordenador do Instituto Esporte & Educação
Doutor em Ciências da Pedagogia do Movimento Humano pela EEFEUSP – SP, Mestre em Educação Motora pela FEF-UNICAMP – SP, Especialista em Psicomotricidade – CESIR – SP, Professor dos cursos de pós-graduação em Pedagogia do Esporte da Estácio e FMU.
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